segunda-feira, maio 20, 2024
ARTIGOS

FASCINADOS: uma perspectiva clássico cristã sobre a exposição excessiva às telas

O ano de 2020 é um daqueles períodos difíceis que muitos gostariam de esquecer, ou, se possível, simplesmente riscá-lo da existência. Contudo, períodos de tribulação e angústia são frequentemente também tempos de descobertas, são ocasiões que nos movem e nos sacodem, que nos levam a repensar e a reavaliar, a refletir sobre tudo e todos.  A situação que estamos vivendo, com suas políticas de distanciamento social e de quarentenas sem fim, tem revelado problemas graves e importantes, que embora onipresentes nas vidas de quase todos eram, até então, quase que imperceptíveis para a maioria das pessoas, dada a rotina frenética e alienante que vivemos. Um desses problemas é o tempo excessivo de exposição às telas dos aparelhos eletrônicos, o que tem se mostrado uma preocupação adicional e crescente para muitos pais e educadores.

O receio quanto aos perigos relacionados a esse tipo de exposição não é algo novo. Na verdade, é quase tão antigo quanto a própria invenção dos aparelhos televisivos. Os alertas já vêm de muitas décadas e tais perigos povoam desde cedo a imaginação de artistas e autores, alimentando um sem número de obras científicas e de ficção. Ironicamente, muitas desses alertas são veiculados através dos próprios meios que buscam denunciar, servindo assim como um instrumento para fomentar aquelas coisas mesmas que querem evitar. A indústria cinematográfica é plena de tais casos!

Os riscos apontados são diversos e graves, todos devidamente documentados e analisados em uma extensa e diversificada bibliografia. Não há segredo algum. Os problemas são de toda sorte, físicos, emocionais, cognitivos e espirituais, e  afetam tanto os indivíduos em suas singularidades como todo o tecido social. Tal produção biográfica aumenta e se diversifica na exata medida em que os problemas se agravam e se alastram como uma epidemia (esta é, aliás, talvez a pior epidemia que já enfrentamos, porquanto seus efeitos devastadores atingem tanto a saúde do corpo quanto do espírito).

Dentre as obras mais recentes que tratam destas questões, ganharam algum destaque os livros do neurocientista francês Michel Desmurget, “TV Lobotomie” (2011) e “A Fábrica de cretinos digitais” (2019), em que se abordam os perigos da TV e das demais telas respectivamente. É aterrador o quadro que desenha diante dos nossos olhos. Depois de tais leituras, nem mesmo o mais alienado dos pais ou dos educadores se sentirá inteiramente confortável ao deixar seus filhos ou alunos entregues à própria sorte diante das telas (no caso de ainda terem condições de compreender o que leram, é claro!).

Mas, se considerarmos o que foi apresentado por aquele autor à luz do conceito de educação clássica e cristã, os contornos daquele quadro assumem traços verdadeiramente dantescos.

Em Aristóteles (que é um dos pilares da educação clássica), podemos encontrar na soma de dois princípios pedagógicos fundamentais, a razão que torna tão difícil resistirmos ao fascínio pelas telas. O primeiro deles nos é apresentado nas linhas iniciais de uma de suas obras mais importantes. Trata-se do desejo natural dos seres humanos pelo conhecimento e do seu amor pelos sentidos, especialmente o da visão.

“Todos os homens desejam por natureza conhecer. Prova disso, é o amor pelas sensações. Os homens amam as sensações por si mesmas, independentemente de sua utilidade, mas acima de todas, eles amam a da visão. O motivo está no fato de que é a visão que mais os faz conhecer, pois é por meio dela que se manifestam mais diferenças”

Metafísica, livro I

O outro princípio diz respeito a constatação de que os homens preferem (por natureza) um estado de descanso a um de trabalho (o ócio ao negócio), pois lhes é mais prazeroso o repouso que a fadiga (Notem, ainda que em termos clássicos a ideia de ócio esteja ligada a atividade intelectual de alto nível, como a filosófica –  na verdade, ela é a forma mais elevada de ócio – tanto na antiguidade, como hoje, isso também significava ficar apenas de pernas para o ar, sem fazer coisa alguma.

Ao somarmos essa lição à anterior, podemos dizer que o aprendizado pela visão é preferível aqueles que se dão pelos outros sentidos, pois esse apresenta mais diferenças com um menor esforço. O aprendizado pela visão é, neste caso, mais passivo e, portanto, menos cansativo. Igualmente, a mera contemplação passiva de imagens é mais prazerosa que uma contemplação ativa, pois, demanda menor esforço. Diante disso, não é difícil perceber que o desejo pelo conhecimento e o prazer proporcionado pela visão, naturais ao Homem, encontram nas telas, na sucessão quase infinita de imagens, uma fonte inesgotável de prazer e satisfação fácil e imediata.

Qual é o problema aqui em questão? Por que a exposição às telas configura algo nocivo? Para que vocês percebam a gravidade do que estou lhes mostrando, é preciso que tenham em mente algo importante sobre a natureza do conhecimento. O conhecimento enquanto tal, não é da ordem das coisas particulares, mas do universal, ele é algo abstrato, não concreto. Isso significa que sua aquisição, stricto sensu, não é uma operação que possa ser realizada, passiva e exclusivamente, por meio da percepção sensível. Embora o conhecimento em muitos casos dependa dos sentidos e das coisas percebidas por meio deles, ele os transcende. Ver uma “árvore”, é diferente de conhecer a “Árvore”. O primeiro caso está no plano da animalidade, o segundo no plano do humano e do divino. É um ato intelectual, ou melhor, de intelecção. Enquanto os animais percebem as coisas, os seres humanos, além de as perceberem, também as conhecem por meio do intelecto. Inteligir não é o mesmo que perceber por meio dos sentidos. Essa distinção é fundamental e tem implicações pedagógicas profundas.

Para conhecer, é necessária uma atividade laboral da alma, ativa, não passiva, o que requer um esforço conforme o grau de abstração daquilo que é inteligido. Assim, em princípio, o nível de aprendizado é inversamente proporcional ao nível de prazer sensorial produzido. Quanto maior o prazer, menor o aprendizado e vice versa. Por isso que a educação das paixões é uma parte tão importante na formação das crianças. Por meio dela se busca reverter essa tendência da alma humana, de modo a se encontrar prazer naquilo que é mais afastado dos sentidos. (Em um contexto cristão isso se torna ainda mais interessante e significativo. Tendo em vista a queda e o fato de que Deus é espírito, não é de se espantar que os homens tenham uma tendência em suas paixões que os leve para longe do conhecimento de Deus).

Qual a lição prática que podemos aprender com esses princípios apontados por Aristóteles? Na medida que a mera percepção sensorial de algo não é capaz de gerar por si só conhecimento e aprendizado, na medida em que inteligir não é o mesmo que perceber, podemos estar seguros de que a mera exposição às telas não implica por si só em aprendizado. Para ser mais exato, o prazer constante e a facilidade com que é obtido acaba por criar na alma do aprendiz uma condição viciosa, que o impossibilita para aquisição do conhecimento verdadeiro. Ele não mais deseja conhecer, mas apenas o prazer causado pela estimulação sensorial. Um ser nessa condição é, tragicamente, mais um animal que um homem. Interessante dizer que temos atuando aqui, a mesma condição psicológica que alimenta os mecanismos de rolagem infinita das telas dos smartphones e a indústria da pornografia

Além dessas lições, existe outro ponto que é importantíssimo considerar à luz da pedagogia clássica: que o aprendizado se dá, em grande medida, pela imitação de imagens ou modelos. O princípio em questão repousa no fato de nos tornamos como aquilo que admiramos e amamos contemplar. Essa ideia compõe o cerne da educação clássica. E o seu acerto pode ser atestado pelos reiterados alertas que encontramos na Bíblia quanto à idolatria, ao cuidado com aquilo que nos permitimos ver e experimentar, ao cuidado com as companhias e, principalmente, na exortação constante à imitação de Cristo, o modelo para o qual deve se voltar toda a nossa atenção e atividade contemplativa

18E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito.

(2 Coríntios 3.18).

Considerando apenas esses três elementos da educação clássica, não é de todo complicado perceber o potencial destrutivo que o contato desmedido com as telas e suas imagens pode provocar na alma daqueles a elas sujeitados.  Mas o problema é ainda mais grave e aterrorizante. Se consideramos a questão à luz da educação clássica em sua totalidade, temos que as deformações (físicas, emocionais, intelectuais e espirituais) causadas pelo contato excessivo com as telas é apenas um epifenômeno de um problema muito mais antigo, complexo e grave. Ele representa apenas o último ato de um processo que começa no Éden e que consiste na degradação da racionalidade humana, na destruição de sua essência, de sua verdadeira natureza como imagem e semelhança do Logos divino.

Um dos momentos cruciais nesse processo foi o abandono das sete artes liberais, o trivium e o quadrivium, no que tange ao espírito e propósito que as animava. O ensino dessas artes visava, antes de qualquer coisa, inculcar um padrão de pensamento capaz de perceber no mundo seu sentido e unidade, sua coerência e significado. O ensino por meio das artes liberais buscava uma adequação da racionalidade humana (entendida aqui no sentido clássico) com a racionalidade do mundo (que é, senão, a expressão da racionalidade divina); buscava a conformação do logos humano ao Logos divino (que é, Cristo).

Foi graças ao abandono total do paradigma clássico de educação que as mentes e corações de gerações inteiras se tornaram acessíveis e capazes de suportar os mecanismos atuais de destruição… em contraste, uma mente como aquelas que estão sendo preparadas através do resgate desse paradigma educacional, encontra-se praticamente imune a tais estratagemas infernais. Não apenas porque ele se funda na verdadeira natureza e ordem das coisas, mas também porque uma mente cultivada e desenvolvida através dele (do seu currículo e método) não consegue suportar por muito tempo o vazio, a falta de sentido, de coerência e de valor que a exposição às telas implica e impõe. Tal alma tem sede e fome de conhecimento verdadeiros, abstratos, objetivos e universais.

Aqui também temos um paralelo muito interessante com o texto sagrado, quando Paulo fala aos coríntios a partir da distinção entre aqueles que são “carnais” e aqueles que são “espirituais”

 14Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. 15Mas o que é espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido. 16 Porque quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo.

1 Coríntios 2:14-16

 

E no mesmo espírito nos fala o autor de Hebreus:

 

Ora, todo aquele que se alimenta de leite é inexperiente na palavra da justiça, porque é criança. Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que, pela prática, têm as suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal.

(Hebreus 5:13 e 14)  

O problema, portanto, não está localizado na mera exposição excessiva às telas (como certamente entenderão muitos dos leitores daqueles autores mencionados no início), mas no esvaziamento e destruição do logos que dá a esses mecanismos o combustível que os movimenta e anima.

É preciso alimentar nossas crianças, jovens, adultos e nós mesmos com o “leite racional” do qual fala o apóstolo Pedro em sua 1ª epístola.

Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo

1ª Pedro 2:2.

Nutrir-nos com uma dieta de alimentos sólidos (no sentido espiritual), de tudo aquilo que é verdadeiro, puro, louvável, honesto, digno de honra e louvor (Filipenses 4:8). Assim procedendo, estaremos contribuindo para que nossos filhos ou alunos olhem com verdadeiro desejo os alimentos do alto e que possam, não apenas contemplar e encher seus olhos com as maravilhas dos céus e da terra, mas que um dia contemplem a Face daquele que fez todas as coisas (Apocalipse 22:4).

Professor Daniel Lourenço

3 thoughts on “FASCINADOS: uma perspectiva clássico cristã sobre a exposição excessiva às telas

  • Victor

    Texto começou Interessante, mas força muito a barra no final. Dizer que a educação clássica torna a pessoa “imune” às estratégias do inferno é levar a finalidade da educação muito além do que ela se destina. Se fosse certo, as pessoas educadas nesse esteio, na idade média, jamais cairiam em pecado? Ou reconheceram prontamente os artifícios de satanás? Complicado.

    O abandono da educação clássica não gerou gerações inteiras mais fracas, espiritualmente. O autor colocou uma imagem da educação a qual ela não se presta. Ademais, a igreja primitiva desconhecia a educação clássica (a maioria sequer sabia ler). Ainda assim, fizeram mais avanços no Reino que não parte dos educados da idade média, e persistiram mais tempo fora do erro.

    Ainda pensei em compartilhar o texto, mas desse jeito não dá.

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  • O ser humano, existe escatologicamente e o percurso é tão amplo quanto sua natureza eterna. Conectado a ambientes materiais, finitos, temporais, segue oscilando entre a intuição de sua espiritualidade na plataforma de algum racionalismo, e tem seu NORTE é alterado. A identidade e identificação de tudo sofre sob equivocada interpretação e sucumbe à geração das divindades dos sentidos… A exposição ao que NÃO É, sobrepõe o que É… A realidade é distorcida e dilacera as composições… As aulas do professor Daniel, são de extrema importância e urgência para as famílias, os indivíduos… como um farol neste oceano de ilusionistas e ilusionismos…

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  • Renata Calantone

    Que maravilha ler esse artigo! Quanto aprendizado!!!

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